Cláudio Pavanelli foi o primeiro membro da delegação do Flamengo a desembarcar nos Estados Unidos para o Mundial de Clubes, há 20 dias, para se atualizar em um congresso de medicina esportiva. A volta ao Ninho do Urubu, onde já trabalhou entre 2013 e 2014, época em que o clube projetava seu Centro de Excelência em Performance, se deu após um projeto de educação continuada que já dura nove anos fora do Brasil, e o recolocou na posição de “Head of Sports Science" do Departamento de Saúde e Alto Rendimento.
Em entrevista ao GLOBO já em solo americano, o coordenador científico rubro-negro explica de que maneira o torneio da Fifa pode mostrar que o Flamengo está evoluindo nessa área em relação aos europeus, e como a qualificação nos Estados Unidos, celeiros de pesquisas, é importante.
Nos Estados Unidos há uma inegável cultura voltada para pesquisa, inclusive sobre o esporte. Como o futebol brasileiro e o Flamengo se inserem na medicina esportiva nos últimos anos? Em que lugar o clube está dentro desse assunto, em relação a controle de carga, gestão de desempenho e prevenção de lesões?
Falar de ciência do esporte aplicada ao futebol envolve diversas áreas. A medicina, nutrição, psicologia, preparação física, fisioterapia. A fisiologia acaba sendo o elo de todas as áreas. E há três aspectos que o atleta vai passar na carreira: o tratamento, a parte curativa, a prevenção, e a evolução da performance. Esse trabalho é feito com uma gestão de risco, entre a carga ideal, o que o atleta está absorvendo, para que tenha adaptação do corpo e melhora da performance. Esse é o enredo que a ciência do esporte busca para o atleta. Entender a carga de treinamento, externa e interna. O quanto esse atleta está apto a absorver de treinamento, para que tenha uma evolução efetiva, eficaz e saudável. Isso é o que a gente busca com segurança.
A grande diferença que tem nos EUA em relação ao Brasil é a questão da estrutura. O Brasil tem grandes profissionais, em qualquer área, na parte de cirurgia, ortopedia, nutrição, preparação física, fisiologia…Por isso estamos sempre sendo convidados para congressos, dando aulas, trocando experiências. E o polo da ciência do esporte nos EUA existe por que a cultura norte-americana e a educação são pautadas no esporte. Desde a escola até as faculdades o esporte é muito presente. Tem essa ligação muito forte. E isso se liga a parte de esporte de alto rendimento e qualidade de vida.
A cultura americana, por outro lado, não prioriza a prática do futebol no melhor dos níveis, no alto rendimento, como outros esportes. Com o Mundial nos Estados Unidos, é possível dizer que teremos o melhor do futebol jogado em clubes, mas que se conecta com o país quando a gente fala dos estudos do esporte de forma geral nos polos de pesquisa. Há uma procura e um intercâmbio entre Brasil e Estados Unidos nesse sentido?
A grande diferença é que os EUA centralizam as pesquisas ligadas aos aspectos mais profundos da ciência do esporte. Alemanha, Inglaterra, Espanha também publicam muita coisa. Pegam a ciência profunda muito forte nos EUA e colocam de forma mais aplicada. Vim 20 dias antes do Mundial pros EUA porque todo ano tem a principal reunião científica do mundo acadêmico do esporte. O Colégio Americano de Medicina do Esporte. Esse congresso dita as regras e diretrizes da medicina do esporte, aplicada em questões de saúde e performance. As grandes indústrias que investem na ciência, NASA, Exército Americano,são patrocinadores e estão sempre presentes nesses eventos, pra entender como o soldado pode ser submetido a stress mais elevados, e como isso repercute, por exemplo . E vim a outro evento, só ligado a performance no futebol, em Charlotte, num clube da MLS. Eles conseguem juntar a ciência básica, laboratorial, de pesquisa de universidade, com a ciência prática, que vemos em outros centros.
Temos grandes pesquisadores que conhecem e aplicam a ciência do esporte. Tem pessoas do meio acadêmico que tem dificuldade de colocar isso na prática no esporte. E tem o outro lado. Dentro de um clube de alto rendimento, é difícil ter uma vida acadêmica continuada . E aí começam algumas lacunas entre teoria e prática. São poucos no Brasil que têm a cultura de se manter atualizado, poder conversar, bater papo, com essas pessoas de ponta da cadeia da ciência. E as pessoas acabam absorvendo o que a mídia social passa. E não tem oportunidade de discutir a pesquisa. Não são todos, são alguns, mas a mídia social possibilita isso. O problema é a referência que se vê na mídia social. A ciência depende desse termo. Quem fez, sabe explicar em diversas situações, para obter o sucesso.
A vivência dos profissionais do Flamengo e a sua em particular é nessa direção? O que pode ser dito sobre a evolução do clube nesse sentido, já que houve uma reformulação este ano para que o time tenha cada vez mais um rendimento de nível europeu?
Moro nos Estados Unidos há mais de nove anos. A volta ao clube é para coordenar toda a ciência do esporte, no futebol, na base, feminino e esportes olímpicos. Objetivo é criar uma organização de todas as categorias, uma linha metodológica. A informação é o mais importante, não a ciência por si só. Aplicar e levar essa informação a todos os departamentos, para que todos possam utilizar da melhor forma. Qualquer informação coletada é compartilhada e cada departamento vai usar para poder aplicar seu melhor conhecimento. Essa é a grande diferença. Essa conexão das áreas ligadas à performance, prevenção e reabilitação. Para que seja aplicada a especialidade de cada um. O conceito é aprimorar as técnicas de cada departamento e essa conexão ser mais rápida e eficiente. Essa é a grande evolução. Posso garantir que essa área da ciência do esporte não deve nada para nenhum local da Europa ou Estados Unidos. Hoje em dia, apenas comprar o equipamento não é atualizar o departamento. Não significa que vai usar na sua melhor capacidade. O conhecimento do profissional é que faz com o que o equipamento tenha uso efetivo e seja até atualizado. A evolução depende dos profissionais, não o contrário. A necessidade do profissional e seu conhecimento é que cria a necessidade de uma nova tecnologia.
E chegando no time principal, que chega no Mundial para medir forças com clubes de ponta da Europa. Que trabalho foi feito com o elenco nos últimos meses que mostram evolução dentro dessa área no Flamengo? Esse embate vai deixar claro que nessa área está tudo nivelado, com a diferença do calendário?
A gente alterou processos, mudou bastante coisa, o procedimento diário do atleta. E é fácil ver o que acontece através de números. Há maior participação de grandes jogadores que não vinham tendo sequência muito grande. Além de conseguir sequência, eles têm intensidade e participação fundamental nos jogos com maior incidência. O objetivo é que toda a comissão técnica tenha o maior número de atletas e melhor nível de condicionamento dos atletas para que eles sejam utilizados com maior e melhor estratégia. Um número de atletas mais pronto possível em mais jogos. Equipe multidisciplinar busca isso. Ter número maior de atletas com melhor nível de condicionamento físico individual para que sejam utilizados no maior número de jogos possíveis, e isso tem sido maior que nos anos anteriores.
O Flamengo tem uma minutagem alta em relação aos europeus mesmo com eles no fim de temporada. Com esse trabalho de gestão de lesões, da pra equilibrar isso? Há uma percepção de maior número de lesões esse ano, mas de uma recuperação mais rápida. Essa temporada tem esse tipo de prioridade?
Exatamente isso. Na busca de alta intensidade é utopia falar que não vai ter lesão, devido a alta intensidade e frequência de jogos. O único jeito de não ter lesão é não jogar. Temos que entender a individualidade. O quanto o atleta gasta, o quanto rende, como se recupera, e quais ferramentas para potencializar essa recuperação. Entre jogos, e entre lesões. Tem atleta que gasta muito e se recupera rápido. Tem atleta que gasta muito e recupera lento. Tem atleta que gasta pouco e recupera rápido. Tem atleta que gasta pouco e recupera lento. Isso é somado a realidade e ao momento do atleta. Se tem descanso prejudicado, alimentação adequada, é um multifatorial de conhecimento envolvido. Além de estarem em um nível acima se comparado a anos anteriores, a gente consegue, quando acontece, uma recuperação mais rápida para esse retorno. Esse ponto é a prova prática da importância de todas as áreas e sua especialização e diferente visão para o objetivo em comum. Na recuperação pós-lesão, entre jogos, ou evolução da performance. Todas as áreas, da psicologia à nutrição, tem o mesmo objetivo. Uma hora pra recuperar e outra para evoluir na performance.
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